sábado, 1 de dezembro de 2018

'Era como um atestado de óbito', diz soropositivo que vive com o HIV indetectável em Pernambuco


Em Pernambuco, 2.697 pessoas contraíram o vírus HIV, causador da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids), em 2017. Desde 1983, o número de pessoas com a doença no estado chegou a 26.212, o que corresponde a uma média mensal de 64 diagnósticos, de acordo com a Secretaria de Saúde. Neste sábado (1º), quando é celebrado o Dia Mundial de Luta contra a Aids, mais de 584 mil pessoas estão em tratamento no Brasil, das quais 92% estão com o vírus indetectável.

Estar com o vírus indetectável significa ter uma taxa menor que 50 cópias do HIV no organismo. Esses níveis são medidos por meio de exames de sangue e estar indetectável significa, também, que o paciente não mais transmite o vírus para outras pessoas.
Com 57 anos de idade, Wladimir Reis vive com o HIV desde 1992. Na época, o conhecimento sobre o vírus ainda era escasso e as campanhas sobre a epidemia assustavam muito mais que alertavam. Ele, que coordena o Grupo de Trabalhos em Prevenção Posithivo (GTP+) e acompanha pessoas vivendo com o vírus, descobriu a infecção no pior momento de sua vida: após a morte de seu companheiro devido às complicações ocasionadas pela síndrome.
"Antes, só se chamava de Aids e não se falava em HIV. Era como um atestado de óbito. Meu companheiro ficou doente a ponto de não conseguir mais levantar. Ele era muito preocupado com a aparência e cantava, mas percebi que havia algo errado quando ele passou a ter dificuldades para ir ao trabalho. Numa sexta-feira, fomos no médico e ele disse que era uma pneumonia. Devíamos voltar na segunda para ele se internar. Viajei a trabalho e recebi a ligação. Meu companheiro tinha morrido", lembra.
Apesar do pouco conhecimento sobre o HIV na época, os rumores corriam e a desconfiança de que tinha o vírus logo atingiu Wladimir. Junto com ela, veio a desinformação sobre a forma de contágio, que ocorre apenas por meio do contato com sangue, sêmen ou fluidos vaginais infectados.
"Quando cheguei no enterro, a família dizia para não chegar perto do corpo, porque 'ele morreu de Aids'. O caixão foi pregado e jogaram cal por cima. O cemitério dizia que não podia manter ele por muito tempo enterrado ali, porque ele passaria a doença para todo mundo. Eu fiquei aterrorizado. Quando souberam, meus amigos sumiram. Colegas de trabalho perguntavam se eu podia comer junto com eles, se não iria passar para alguém", relembra Wladimir.
Apesar de ter sido diagnosticado em 1992, Wladimir só passou a tomar os medicamentos antirretrovirais oito anos depois. Fumante, ele abandonou o cigarro após os sintomas que ameaçavam sua saúde avançarem.
"Fiquei doente e o médico disse que o quadro só iria piorar. A medicação era muito pesada antigamente. Hoje, tomo dois remédios por dia. Isso me mantém indetectável e, consequentemente, intransmissível. Vivo uma vida saudável, mas o mais importante é o acolhimento. Profissionais de saúde que nos tratem como gente e as pessoas do nosso entorno também", explica Wladimir.

Depressão e falta de conhecimento

Aos 27 anos de idade, a enfermeira Juliana* carrega no corpo as cicatrizes da violência que culminou em sua infecção. Ela vive com o HIV desde 2011, quando foi presa por tráfico de drogas junto com outras duas travestis. No presídio, ela e suas colegas foram estupradas.
"Fui acusada de portar 18 pedras de crack e R$ 32, porque instiguei as outras meninas a não pagarem suborno aos policiais que nos garantiriam proteção. Uma policial achou que eu fosse mulher cis e foi me revistar. Quando viu que eu tinha genitália masculina, me bateu e cortou meu cabelo. Foi aí que me neguei a pagar. Plantaram a droga em mim, mas fui absolvida. Tinha câmeras no hotel em que isso aconteceu", explica.
Antes de obter a liberdade, no entanto, Juliana precisou cumprir três anos e três meses de prisão, por um crime que não cometeu. Após o estupro, presa aos 21 anos de idade, ela entrou num grave quadro de depressão.
"Os detentos foram bem receptivos, mas à noite, queriam transar conosco. Eu neguei e um deles me esfaqueou três vezes na perna. Daí eu cedi, mas ele ainda quis que outros dois me segurassem para que ele me estuprasse. As outras duas meninas foram violentadas por todos. Eu, só por ele, que disse que eu seria só dele. No outro dia, fui para a enfermaria, com uma fissura anal grande e contei à profissional de saúde. Sem sensibilidade nenhuma ela pediu que eu apontasse quem foi e disse 'ele tem aids’. Não recebi coquetel, testagem, nada", diz Juliana.
Juliana, diferente de Wladimir, nunca chegou a desenvolver a síndrome da imunodeficiência, mas teve a saúde extremamente debilitada pela depressão. O primeiro teste que ela fez no sistema prisional veio quatro meses depois da violência, não por iniciativa do estado, mas do GTP+, que realiza acompanhamento da população LGBT e de pessoas com HIV no sistema prisional de Pernambuco.
"Era a pior fase da minha depressão. Foi aí que tive alguma perspectiva de vida. Fiz o tratamento e alcancei a condição de vírus indetectável desde então. Fui absolvida, mas não sei se os policiais foram punidos. Eles iam até meu apartamento pedir dinheiro, tive que me mudar. Eu conheci a militância ainda dentro do sistema prisional. Hoje, sou formada em enfermagem e atuo na gestão pública, mas as sequelas permanecem. Tenho síndrome do pânico e não consigo ficar em lugares fechados", complementa.

HIV indetectável

Infectologista do Hospital Correia Picanço, na Zona Norte do Recife, referência no tratamento de doenças infectocontagiosas, Thiago Ferraz explica que diversas entidades de estudos sobre o HIV e Aids já consideram que o quadro indetectável do vírus significa, também, a intransmissibilidade. Mesmo as pessoas que já desenvolveram a Aids têm a possibilidade de suprimir a replicação do vírus.
"São poucas exceções as pessoas que, realizando a terapia antirretroviral, não conseguem que o vírus fique indetectável. A partir do momento que conseguimos suprimir a replicação do HIV, isso já diminui a agressão dele sobre o sistema imune. Isso evita a progressão para a Aids e dificulta ainda mais as infecções oportunistas", afirma.
Segundo Thiago, o protocolo de tratamento do HIV recomendado pelo Ministério da Saúde é composto, na maioria dos casos, pela combinação de dois comprimidos, que devem ser tomados diariamente. O tratamento também inclui testes constantes para acompanhar a evolução do vírus no corpo do paciente.
"O paciente fica com esse medicamento ao longo dos anos, já que ainda não conseguimos erradicar o HIV. É importante que o tratamento nunca seja interrompido, porque sempre há um vírus que chamamos de residual, que é o que permanece no corpo, mesmo com o tratamento. Caso a pessoa pare a medicação, esse vírus pode se tornar resistente", aconselha Thiago.

Onde fazer o teste?

O Sistema Único de Saúde (SUS) disponibiliza testes rápidos para a detecção do vírus nas unidades de saúde brasileiras. Em caso de resultado positivo, o Ministério de Saúde orienta o paciente a procurar o serviço de saúde para testes complementares. Em Pernambuco, é possível se testar nos postos de saúde, nos Centros de Testagem e Aconselhamento e em outras unidades de saúde, como maternidades e UPAs.
ONGs também realizam a testagem de forma gratuita, como o GTP+ e a Gestos - Soropositividade, Comunicação e Gênero, na Rua dos Médicis, também no bairro da Boa Vista. Nesta última, os serviços de testagem e aconselhamento são voltados a pessoas entre 18 e 29 anos.
Os testes são realizados nas terças-feiras, de manhã e à tarde, e nas quartas-feiras, à tarde, na sede da entidade, no Centro do Recife. O atendimento é realizado mediante agendamento, pelo telefone (81) 3231.3880.

Como se prevenir?

A melhor forma de prevenir a transmissão do HIV, assim como outras infecções sexualmente transmissíveis, é o uso dos preservativos masculino e feminino, além de gel lubrificante, todos distribuídos gratuitamente em unidades de saúde.
A PEP (profilaxia pós exposição) são medicamentos antirretrovirais que são tomados depois que a pessoa se expôs ao HIV e quer tentar evitar a contaminação. É uma estratégia de emergência. Ela impede que o vírus se multiplique e se instale no organismo e o sistema de defesa consegue dar conta de eliminá-lo.
A PrEP (profilaxia pré-exposição) é uma nova forma de prevenção com o uso de medicamentos contra o HIV em pessoas que não têm o HIV. Ela está disponível no SUS e é voltada para grupos mais vulneráveis. A pessoa toma antirretrovirais diariamente e o medicamento está permanentemente no sangue. Com isso, se a pessoa tiver contato com o HIV, os antirretrovirais (que já estão no sangue) impedem que o vírus se multiplique e se instale no organismo.
A PrEP só é liberada para quem tem mais de 18 anos e não tem HIV. Profissionais do sexo, pessoas trans, gays e outros homens que fazem sexo com homens têm prioridade para receber a PrEP pelo SUS. Em Pernambuco, o Hospital Universitário Oswaldo Cruz (Huoc), n bairro de Santo Amaro, no Centro do Recife, atende 124 pessoas que fazem uso desse método preventivo.
A PrEP faz parte de um novo modelo de cuidado chamado prevenção combinada, que oferece diferentes opções para evitar novos casos de HIV e outras infecções. A prevenção combinada inclui, por exemplo, preservativos e vacinas. 








Fonte: g1.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário